Tanto a Lei das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/2019) quanto a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) exigem que a edição ou alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos sejam precedidas da realização de análise de impacto regulatório (AIR), que conterá informações e dados sobre os seus possíveis efeitos.
O Decreto regulamentador nº 10.411/2020 exige que a AIR ocorra em sede de processo administrativo, cujo início se dá mediante a definição do problema regulatório contendo as informações e os dados sobre os seus prováveis efeitos, de forma a subsidiar a melhor tomada de decisão.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), embora a AIR possa ser vista como um instrumento adequado para a formulação de políticas, naturalmente podem existir forças que militem contra o seu uso ou, ainda, que a utilizem de maneira desvirtuada, e por essa razão propôs um framework de extrema relevância [1].
Uma regulação baseada em evidências é um compromisso político que o Brasil deve assumir para produzir os melhores estudos sempre de forma absolutamente imparcial, de modo que o artigo 37, caput, da CF seja observado.
A regulação possui demasiada importância para que as economias se desenvolvam de forma conciliatória com a proteção dos direitos dos cidadãos, por intermédio da adequada disponibilização de bens e/ou da prestação dos serviços.
Para melhorar o processo regulatório, de forma resumida o Decreto nº 10.411/2020, estabeleceu que a AIR deve conter minimamente: (1) a identificação do problema regulatório que se pretende solucionar e as suas causas; (2) os agentes afetados pelo problema; (3) os objetivos a serem alcançados, as alternativas possíveis e os impactos de cada uma delas; e (4) quais foram as alternativas adotadas internacionalmente para a solução do mesmo problema.
Ocorre que esse rol acima tem se demonstrado insuficiente em alguns casos, o que é natural, pois a regulação é construída por seres humanos dotados de perfis, convicções pessoais e características que sem dúvida influenciarão na redação e principalmente na conclusão da AIR.
Por essa razão a OCDE exige sejam mensurados os custos e benefícios potenciais, diretos e indiretos e observadas as evidências empíricas e científicas.
Ainda nesta senda, é imperioso que a AIR reduza o impacto dos eventuais vieses e erros comportamentais por parte dos reguladores, pois é indene de dúvidas que as conclusões podem ser influenciadas pela forma como o problema é enquadrado, ou ainda, pelas experiências e convicções pessoais dos membros do grupo.
O segundo ponto a ser combatido é a denominada unanimidade de pensamento do grupo, ou seja, deve ser estimulada a conflituosidade construtiva na discussão do tema visando a obtenção das melhores ponderações possíveis.
Também deve ser evitado uma terceira fragilidade: o excesso de confiança e o viés de otimismo, que eventualmente podem levar a não identificar lacunas de conhecimento e deixar de avaliar o que pode dar errado.
A última observação da OCDE trilha na oposição ao denominado viés de confirmação e raciocínio motivado, isto é, não se pode amplificar/enfatizar o que eventualmente for de interesse do regulador e ignorar ou reinterpretar o que não for de seu agrado.
Para reduzir esses riscos, a OCDE aconselha que as equipes responsáveis pela elaboração da AIR sejam dotadas de indivíduos com origens, formações, conhecimentos e convicções distintas, refletindo a multiculturalidade da sociedade.
Por essa razão, é recomendável a celebração de termos de cooperação entre as agências reguladoras e os ministérios para que servidores de diversos órgãos e entidades, assegurada a ausência de conflitos de interesses, participem e troquem informações para a melhor elaboração das AIRs.
Obviamente que essa atuação multifacetária ensejará um controle jurisdicional mais enfático, e por essa razão demandará um maior adensamento da motivação.
Também devem ser mensurados os impactos na economia a médio e longo prazo, como por exemplo, a abertura do mercado, a ampliação da concorrência, a geração de empregos, o aumento da pesquisa e do desenvolvimento, a inovação e os impactos ambientais e o bem-estar da população no âmbito nacional.
Observados os critérios acima apresentados, nada impede que em algumas situações as conclusões de uma AIR sejam distintas, mas o ônus argumentativo do regulador que optou por não avançar em determinados temas será maior, e na mesma intensidade progredirá o controle externo, social e jurisdicional em relação à decisão.
Os EUA possuem 29 estados e Washington DC autorizando a exploração econômica da cannabis para fins medicinais e o uso do cânhamo em nível industrial, além do uso adulto recreativo.
Por essa razão, vamos utilizar a AIR apenas do estado de Nova York para confrontar diferenças e semelhanças com a elaborada pela Anvisa.
O estado de Nova York apresentou em sua AIR que além da cannabis ser facilmente acessível no mercado não regulado, é imprescindível analisá-la sob a ótica da saúde pública comparativamente a uma decisão de proscrever os usos recreativo e medicinal.
Para tanto, resgata historicamente que entre o ano 1800 até a década de 1930, a cannabis era considerada um medicamento eficaz nos EUA, a ponto de ser comercializada em farmácias e tranquilamente prescrita pelos médicos para o tratamento de inúmeras enfermidades.
Somente a partir de 1930 é que houve um esforço para convencer a sociedade de que o seu uso, ainda que para fins medicinais, seria um perigo acarretando a sua total proscrição.
Para nos mantermos nos benefícios das finalidades medicinais (pois não estamos a defender o uso recreativo), destacamos que desde 1999 há evidências científicas da que comprovam a redução das dores e náuseas em pacientes oncológicos ou terminais [impactando na queda das prescrições de opioides (um problema sanitário grave nos EUA)], além de sua eficácia no tratamento da epilepsia.
Atualmente as evidências científicas apresentadas pela Fiocruz demonstram que o uso da cannabis medicinal resulta em significativas melhoras nos pacientes portadores de esclerose múltipla e de transtornos neuropsiquiátricos como a doença de Parkinson e outros distúrbios do sono.
Também foram demonstrados os benefícios econômicos, tais como o aumento da receita dos Estados para incrementar políticas públicas de extrema relevância no tocante à segurança pública e às campanhas de conscientização das crianças e dos adolescentes sobre os malefícios do uso recreativo da cannabis, em razão da maior arrecadação de tributos.
Já no Brasil a AIR redigida pela Anvisa de maneira extremamente conservadora e contrária à livre iniciativa e à livre concorrência dentro de heurísticas e vieses desprovidos de evidências científicas e uma mais aprofundada análise de custo-benefício, insiste em manter um modelo obsoleto de regulação que impede o desenvolvimento econômico, reiterando a proibição do cultivo da cannabis no extenso território nacional [que poderia ocorrer com baixos níveis de THC (até 0,2%)], dentro de parâmetros seguros em prol da sociedade.
Desta forma o Brasil permanece exclusivamente dependente da importação de insumos para o desenvolvimento de fitofarmácos derivados da cannabis deixando de avançar em um nicho competitivo da saúde, e tampouco consegue prosperar na pesquisa e no desenvolvimento científico para a criação de novos produtos e/ou na descoberta para a cura de outras doenças, que ao fim e ao cabo alavancariam a economia gerando empregos e rendas.
Por qual razão as conclusões das AIRs são totalmente opostas? Já abordamos em artigo neste editorial a omissão da regulação pela Anvisa em relação ao tema de forma totalmente contraditória com outras pautas inclusive julgadas pelo STF.
Mas além disso, fica evidente a inobservância das indicações da OCDE para que uma regulação ocorra sem heurísticas ou vieses, de modo que se permita o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País na produção e na comercialização de fitofármacos derivados da cannabis, a exemplo das evidências internacionais.
Artigo escrito por Roberto Tadao Magami, para Conjur.